Gustavo Franco participou da elaboração do Plano Real, foi secretário adjunto de política econômica do Ministério da Fazenda e presidente do Banco Central de 1997 a 1999, período em que, segundo ele, de fato venceu-se o campeonato contra a inflação. Ele usa a metáfora esportiva para justificar que a nova moeda, que completa 20 anos, foi apenas a primeira vitória em direção à estabilidade monetária. “Talvez só em 98 que a gente pôde dizer que deu certo, chegamos na inflação zero, entendida como inflação igual à americana”, diz. Nesta entrevista, ele conta um pouco mais sobre sua contribuição para o plano, que classifica como “a experiência de uma vida”.

 

 

Quando a equipe econômica se debruçou sobre o plano, havia uma certeza de que encontrariam a solução?

No começo nenhum de nós tinha qualquer ilusão de que a experiência seria bem-sucedida ou duradoura. O Fernando Henrique era o quarto ministro da Fazenda do presidente Itamar Franco, então era razoável esperar que a gente fosse também ter uma experiência curta. Mas já começamos com a postura de ou a gente vai fazer a coisa certa ou a gente não vai ficar lá. Isso até acabou nos ajudando a obter diferentes concessões e apoio do presidente e de outras pessoas em Brasília. Era como se a gente tivesse a chave para resolver o problema, mas não abríamos mão de ter as condições. Colocávamos os nossos interlocutores em Brasília meio contra a parede - se o cara não nos deixa fazer o que a gente tem que fazer para resolver o problema, então tá bom, eu vou embora e você que fica aí e é o responsável. Funcionou muito bem.

 

Existia uma pressão para acertar? Ou depois de tantos planos fracassados a pressão era menor?

Tinha muito peso sim. Eu diria até que tinha mais peso do que qualquer outro plano, porque uma coisa era o desejo e a pressão sobre a área econômica para fazer um plano de estabilização e acabar com a maldição da inflação. Outra coisa era que os planos de estabilização, em alguns casos, haviam produzido efeitos piores do que a própria inflação. Então, a pressão quando o Fernando Henrique assumiu o ministério era “olha, a princípio não faça nada não, porque se for para fazer alguma coisa do tipo confisco de poupança ou congelamento de preços não vai dar certo”. Essas medidas geram uma reação muito ruim da população e a população estava hostil a qualquer coisa desse tipo. Portanto, a pressão era dupla: faz uma mágica e não pode dar errado.

 

O senhor diria que a URV foi a grande sacada que ajudou o plano a deslanchar?

Quando apareceu a URV foi uma surpresa agradável para as pessoas ver que, afinal, o plano que havia apresentado era quase que um convite para que elas aderissem a uma nova ideia. Isso foi a grande mágica da URV, sem dúvida. E foi muito melhor do que a gente podia imaginar em relação a seus efeitos. Mas é claro que isso foi só uma etapa do plano. Na verdade, depois dos quatro meses de operação da URV, de muita discussão e adaptação, foi lançado o real.

Para muita gente, o plano teria acabado ali, mas não foi nada disso. A inflação no primeiro mês da nova moeda foi de 7%. Um número enorme para os padrões de agora. Para os padrões daquele tempo era uma grande vitória. Nos primeiros doze meses acumulou mais de 30%. Quando o real foi para a rua, o plano entrou em outra fase mais convencional de combate à inflação, na qual foi fundamental a política monetária e cambial. A gente só conseguiu fazer a inflação cair abaixo de 5% no acumulado de 12 meses quase no final de 97. Em 98, que foi nosso melhor ano em matéria de taxa de inflação, tivemos um IPCA de 1,6% ao ano. Talvez só aí que a gente pôde dizer que deu certo, chegamos na inflação zero, entendida como inflação igual à americana. Com isso você muda a cabeça das pessoas. A desindexação ocorre como consequência de você mostrar que o Brasil não precisa ter inflação para sua economia andar.

 

Quando o senhor teve a convicção de que o plano daria certo?

Isso foi se formando com o tempo. No começo, acho que a gente tinha uma postura mais kamikaze, mas quando chegou o momento crucial, em fevereiro de 1994, quando a gente colocou a medida provisória da URV na rua, ali eu acho que cada um de nós tinha uma convicção muito maior de que a coisa iria funcionar. Até aquele momento, até a noite anterior a gente estava permanentemente sob a ameaça de haver alguma interferência, modificação nos planos, alguém colocar alguma coisa na medida provisória que prejudicaria seu funcionamento. Foi uma luta para manter a integridade daquela ideia e fazer ela ir pra rua certinho, do jeito que a gente planejou. Uma vez que foi pra rua daquele jeito, certinho, bonitinho, e teve aquela aceitação, aí a gente respirou fundo e pensou: agora vamos sonhar um pouco.

 

Olhando para trás 20 anos depois, você teria feito alguma coisa diferente?

Sempre me fazem essa pergunta e a resposta é não, eu não faria nada diferente. Qualquer coisa que tivesse sido feita diferente teria mudado toda dinâmica das coisas. O subtexto dessa pergunta costuma ser o câmbio, mas eu não faria diferente, porque se tivesse feito diferente a gente não teria chegado à inflação de 98 naquele momento. Não funcionaria, a gente talvez não sobrevivesse o primeiro ano. Nossa postura sempre foi usar todas as âncoras.

Na ocasião tinha uma brincadeira do Vasco Moscoso de Aragão, personagem do Jorge Amado que era capitão de longo curso. Tinha uma passagem dele que a gente sempre citava. Um dia, ele parou num porto e perguntaram pra ele: capitão, quais âncoras vamos jogar aqui para o navio ficar firme? E ele dizia - “todas”. Não dava para ser menos que isso, senão, não ia funcionar. A ideia subjacente a essa dúvida, se teria um jeito mais fácil de fazer, não, não teve, não tinha uma mágica. A gente fez o melhor que era possível fazer e tendo vivido esse período todo, examinado as alternativas que a gente teve a cada momento, acho muito difícil imaginar que a gente pudesse ter feito diferente e melhor. Tenho enorme orgulho do trabalho que a gente fez e acho que foi muito bom para o país.

 

Isso é um consenso entre os que participaram da elaboração do plano?

Creio que sim, mas isso você tem que perguntar a cada um. Ao longo do tempo teve diferenças de opinião sobre como fazer aqui e ali. Mas sempre a gente conseguiu se entender. Era um grupo muito homogêneo, muito cooperativo. Por mais que a gente discordasse, sempre soubemos resolver nossos problemas internos com tranquilidade.

 

Como o senhor avaliaria a experiência de ter participado da elaboração de um plano econômico?

Como experiência profissional não poderia imaginar nada mais espetacular. Se eu pensasse que alguns anos antes eu estava numa biblioteca estudando a Alemanha, quando é que eu podia imaginar que anos depois eu estaria vivendo aquele negócio no Brasil, no Banco Central? E tendo sucesso em vencer aquele problema. Para mim, pessoalmente, foi a experiência de uma vida, foi maravilhoso. Claro que tem todos os aborrecimentos da função pública, que nem sei se posso dizer que são aborrecimentos, porque você está ali defendendo um interesse público. Mesmo quando você se aborrece, está fazendo o bem e isso é uma sensação muito boa.

 

O senhor fez muitos desafetos na vida pública?

Claro, um monte, e é assim mesmo. Sempre tive muita clareza que se você não fizer desafetos é porque você não trabalhou direito. Como autoridade pública, todo dia você tem que dizer não pelo menos umas 100 vezes. É ilusão completa imaginar que não vai fazer inimigos numa situação como essa. Claro que vão brigar com você, ao dizer não muita gente vai achar ruim. E eu estou lá para isso, para defender o dinheiro das pessoas, o valor da moeda. Por isso eu tive que brigar com muita gente e brigaria de novo, igualzinho.

 

E hoje, qual a sua opinião sobre onde estamos com a inflação? Alguma coisa está sendo conduzida de maneira inadequada?

Bom, acho que nós estamos vivendo um momento perigoso por conta de um retrocesso muito claro na política fiscal. Tal como se o governo agora resolvesse testar os limites e uma estratégia mais heterodoxa para ver se funciona. Isso é um pouco a história dos últimos dois anos e acho que hoje está muito claro que não funciona. Estamos entrando em período eleitoral num ambiente de mau humor generalizado nos mercados financeiros, entre os economistas aqui e no exterior, ou seja, não funcionou essa guinada na direção de um modelo alternativo. Eles chamam de nova matriz macroeconômica, isso foi fracasso retumbante. Dá pra voltar atrás sem maiores consequências. Se for feito no ano que vem, tudo bem, terá sido um pequeno descaminho, mas que não terá maiores consequências.

 

O senhor está temeroso?

É claro que estou temeroso. Eu e a maior parte dos economistas brasileiros esperamos que eles voltem atrás porque estão descaracterizando a consistência macroeconômica que sempre foi a base da política econômica do real para cá. Então não funciona, não dá. Tentou-se, não deu certo. É a presidente que tem que tomar decisão. Ela tem gente trabalhando para ela que tem que entregar resultado, mas não está entregando resultado, não está entregando crescimento, a inflação está subindo e estão fazendo coisas para manter a inflação sob controle que são perigosíssimas. Como controle de preços e congelar preços públicos. Isso não funciona.